Notas do Autor - Capítulo 34
Capítulo 34
A lacuna que nunca se completa
— Como é possível uma cidade na
encosta de um vulcão ativo ser tão bonita?
Ruby estava boquiaberto com a
beleza de Verdanturf, a cidade onde disputaria seu próximo Contest para tentar
garantir mais uma fita. Logo que passou pelo pórtico de entrada, o trio foi
surpreendido com a simplicidade do local. As pequenas ruas ladrilhadas
margeadas por casas simples com belas fachadas, os fartos canteiros de flores,
árvores e outras plantas espalhados ao longo dessas mesmas ruas, dividindo-as
na área principal que dava para uma praça com um chafariz ao centro que tinha
esculturas da linha evolutiva da Roselia. Esta praça era um ponto movimentado
da cidade, pois dali se tinha fácil acesso a todos os lugares importantes, desde
o Centro Pokémon, às áreas residenciais e até mesmo ao Contest Hall.
— Bem, o solo vulcânico é bem
fértil — Sapphire observou. — Não é surpresa que as plantas daqui sejam tão
vivas. O ar puro também ajuda.
— Mas é justamente sobre o ar que
eu estou falando! Tem um vulcão em cima de nós, como isso aqui não está debaixo
de um manto de cinzas? — o garoto ainda parecia confuso.
— Porque nessa região quase sempre
o vento sopra pro norte — disse Zinnia. — É muito raro ele mudar de direção,
então o manto de cinzas acaba indo todo pras rotas que ficam na outra encosta
da montanha. Que inclusive já passei por lá, e vocês têm que ver aquilo ali um
dia. É um lugar lindo! Apesar de não ser legal ficar lá por muito tempo
respirando aquelas cinzas...
— Bom, eu tenho que ir até
Fallarbor para disputar o Contest depois desse, então vamos passar por lá de
qualquer jeito. Será que deveríamos levar máscaras para respirar melhor?
— Não precisa, a rota é bem curta.
Desde que a exposição não seja prolongada a gente vai passar por lá sem
problemas. E a própria limpeza pública de Fallarbor se encarrega de remover as
cinzas que caem por lá, então a cidade está sempre limpa.
— A gente pode pensar em Fallarbor
depois, acho que o melhor a fazer agora é reservar os quartos no Centro Pokémon
— disse Sapphire. — Sempre que tem algum Contest pra acontecer os quartos lotam
muito rápido.
— Tem razão — Ruby assentiu com a
cabeça. — Vamos fazer o check-in, depois comer alguma coisa, e aí vamos ter
tempo para conhecer mais a cidade.
Pois foi durante a caminhada para o
Centro Pokémon que Ruby cruzou com uma pessoa já conhecida na rua, mas que pela
expressão do garoto não era bem o encontro que ele gostaria de ter naquela
tarde.
— Ora ora ora, veio assistir um
Contest de rank mais alto pra tentar aprender alguma coisa? — o tom debochado
da menina era o que mais incomodava Ruby.
— Vim competir, não que isso seja
da sua conta — Ruby foi quem deu um sorriso debochado em seguida. — Mas e você,
Emily? Está aqui porque não conseguiu vencer um Contest desse nível ainda? Não,
não pode ser. Você que é o grande talento da nova geração não teria
dificuldades só com isso. Com certeza deve estar tirando férias. Mas cuidado
pra não relaxar demais, ou o prazo pra conseguir as fitas pro Grande Festival
pode acabar se esgotando!
Emily fechou a cara quase que de
imediato. Já era a segunda vez que Ruby a vencia nessa competição não oficial
de deboche que os dois travavam desde que se conheceram, ainda em Rustboro.
Pior ainda foi perceber que Sapphire, logo atrás do garoto, virou o rosto pro
lado pra não demonstrar que estava segurando o riso.
— Ainda não competi nesse rank
porque achei que seria de bom senso me preparar melhor antes. Mas vamos ver se
esse seu sorrisinho tosco vai continuar quando você for varrido lá — Emily
tinha um tom ríspido na voz. — Eu não quero nem imaginar a tragédia que vai ser
a apresentação de um rei da cafonice que nem você em uma apresentação em
duplas.
Ruby travou por um breve momento,
quase deixou transparecer uma expressão de surpresa, mas já tinha sido o
suficiente para Emily perceber que aquela informação era nova para o menino.
— Ruby, você sabe que os Contests
de Verdanturf são apresentações em duplas, não sabe? — a garota tinha um
sorriso triunfante.
— M-mas é claro que eu sei! Como se
eu fosse deixar passar uma informação tão importante dessa — o garoto
gesticulava histérico tentando convencer a rival de que ele dizia a verdade,
mas sequer conseguia olhar na cara dela. — Não tem como eu cometer um erro de
amador como este!
— Claro que não, eu sei que você
jamais cometeria um deslize como esse. Logo você, que é um coordenador tão
talentoso e promissor — agora era Emily quem havia tomado o controle da troca
de farpas. — Estou ansiosa pra ver a sua apresentação, tenho certeza que ela
vai me divertir muito. Boa sorte, fofo!
A última piscada da garota foi o
golpe de misericórdia pra deixar Ruby bufando de raiva. Ele tinha praticado as
apresentações de forma exaustiva, para só a poucos dias do concurso descobrir
que deveria refazer o planejamento do zero.
— Se você sabia que o Contest era
em duplas, por que treinou cada um individualmente? — Sapphire perguntou de
forma inocente.
— Não sei, Sapphire. Vai ver é porque
eu sou burro. É só por isso — Ruby deu um tapa na própria testa, e a mão foi
descendo o rosto enquanto a sua vontade era de enfiar a cabeça em um buraco e
nunca mais sair dali de dentro.
Os três chegaram ao Centro Pokémon,
e como previsto por Sapphire o lugar estava abarrotado de gente. Eles mal
tinham espaço para andar pelo saguão, já que além do trânsito habitual de
viajantes que usavam o Túnel Rusturf para pegar uma rota mais rápida de
Rustboro até Mauville, agora tinham que lidar com a leva de coordenadores que
competiriam no final de semana.
Ruby estava começando a ficar com
dor de cabeça por causa do falatório de dezenas de pessoas ao mesmo tempo, de
um modo que não conseguia colocar a cabeça pra pensar. Zinnia e Sapphire já
estavam atentas às pessoas que trabalhavam no local. Além das enfermeiras e
seus Pokémons assistentes estarem trabalhando em um ritmo frenético que nem ao
menos lhes permitia esconder a expressão de sobrecarga atrás daquele sorriso
habitual que sempre tinham, a recepção da hospedaria também estava com uma fila
enorme, tal como o refeitório.
— Eu estou com um mal
pressentimento — Ruby comentou, analisando a situação.
— Um minuto da atenção de todos,
por favor — uma das enfermeiras começou a falar usando o microfone do balcão de
recepção para superar o volume da multidão. — Gostaria de lembrar a todos que
estamos em um ambiente com uma ala hospitalar, então pedimos que todos
colaborem para diminuir o barulho para não atrapalhar o descanso e a
recuperação dos pacientes. Acredito que a maioria aqui são treinadores, e não
gostariam de ver algo assim acontecendo a seus Pokémons companheiros.
Pela primeira vez desde que
entraram no prédio, Ruby, Sapphire e Zinnia sentiram a barulheira cessar um
pouco. Ainda havia conversas baixas, mas pelo menos dessa vez os três já
conseguiam ouvir seus próprios pensamentos de novo. A enfermeira, por sua vez,
continuou com o comunicado.
— Também temos mais uma coisa a
dizer. Não é do nosso agrado ter que dar este tipo de aviso, mas infelizmente
todos os quartos da hospedaria já estão ocupados. Aqueles que não conseguiram
fazer uma reserva infelizmente terão que procurar vagas nas pousadas da cidade.
No entanto, ainda podem continuar vigiando a nossa lista de vacância para o
caso de algum quarto ser liberado — mais uma vez o falatório começou a subir o
volume, e agora com algumas reclamações de pessoas na fila para reservas. — Por
favor, contamos com a compreensão de todos!
O grupo saiu desolado da clínica.
Os três pareciam não ter rumo naquele momento, e Ruby era quem mais expressava
preocupação. Sem um lugar confortável para passar as noites não seria possível
descansar o suficiente para ter um bom desempenho no Contest.
Voltaram para a praça e se sentaram
em um dos bancos que rodeava o chafariz para tentar improvisar uma solução de
última hora.
— O jeito é procurar uma pousada —
disse Sapphire. — O quanto isso vai impactar as nossas economias?
— O suficiente para passarmos
aperto durante algumas semanas — Ruby respondeu. — Se dermos sorte ainda
conseguimos um quarto para grupo, que deve sair mais barato do que se sobrarem
só os individuais.
Largados naquele banco e sem saber
o que fazer, os viajantes pareciam esperar por um milagre agora que as opções
estavam ficando mais restritas. Sapphire estava frustrada, até abriu um pacote
de salgadinhos para tentar se acalmar. Zinnia cruzou as pernas e procurou
relaxar enquanto pensava em uma saída. Ruby era o mais frustrado. O garoto só
queria um descanso, não era pedir demais. Mas não tinha nem um lugar pra tomar
um banho.
A aura derrotada do trio chamou a
atenção de uma moça que passava pelas redondezas. Aparentando ter a mesma idade
de Zinnia, ela carregava em um dos braços uma sacola de compras com alguns
mantimentos, enquanto a outra mão tentava impedir que o vento jogasse a franja
dos seus cabelos esverdeados na frente dos olhos. Ela passou os olhos em cada
um dos três, e só parou quando percebeu o garoto que estava ali sentado.
— Ruby? É você?
Sapphire e Zinnia na mesma hora
viraram para o menino, se perguntando de onde ele e aquela moça se conheciam. O
garoto assim que levantou a cabeça para ver quem havia chamado seu nome teve
uma surpresa ao ver que se tratava de uma velha conhecida.
— Wanda?
— Ruby! Eu não acredito que você
está aqui em Verdanturf! Desde quando você chegou? — a moça parecia bastante
animada com a presença do menino.
— Chegamos hoje cedo, eu e as
meninas — Ruby então notou a expressão confusa de suas companheiras de viagem,
antes de perceber o equívoco que havia cometido. — Ah, claro! Vou apresentar
vocês. Estas são Sapphire e Zinnia, estão viajando comigo. Meninas, esta é
Wanda, uma conhecida minha desde a infância. Sapphire, ela é a irmã mais velha
do Wally.
— Ah, claro! Bem que eu estava
achando você familiar — disse a menina, estendendo a mão. — Prazer em te
conhecer.
— Então você já conhece meu
irmãozinho também? Então, Ruby, o Wally nos disse que tinha te encontrado
algumas vezes durante a jornada dele, e que estavam competindo nos Contests.
Ele vai ficar feliz em te ver.
— O Wally está aqui em Verdanturf?
— indagou Ruby.
— Sim, como Verdanturf é caminho
pra onde ele vai, ele resolveu parar aqui durante o fim de semana pra assistir
o Contest imaginando que você viria. Ele deve estar treinando por aí, então por
que vocês não me acompanham até lá em casa? Ele saiu bem cedo hoje, então daqui
a pouco deve estar chegando também.
— Eu adoraria poder rever o pessoal
depois de anos, mas primeiro temos que procurar uma pousada e fazer uma reserva
— disse Ruby. — Não achei que a cidade estaria tão cheia esse fim de semana,
então acabamos não vindo pra cá com muita pressa.
— Então vocês não conseguiram vaga
no Centro Pokémon? — Wanda questionou com tom de preocupação na voz. — Nem
pensar que vocês vão pagar pra ficar em uma das pousadas daqui. Esse fim de
semana elas estão cobrando caro por causa do Contest! Venham comigo. Tenho
certeza que meus pais vão deixar vocês ficarem lá em casa. Temos um quarto de
hóspedes com duas camas, as meninas podem ficar lá, e você dorme com o Wally no
quarto dele, que tem um colchão extra.
— Obrigado, Wanda! Você salvou a
gente de verdade! — Ruby balançava a mão da mulher em um misto de euforia e
alívio.
— Imagina! Você sempre foi um
grande amigo pro Wally, não tem como a gente deixar você numa situação difícil.
Quer dizer, a única situação difícil pra você vai ser dormir junto com o Wally.
Você lembra que sempre que você ia dormir na nossa casa ele ficava tagarelando
até tarde, né?
Aliviados com o convite, o trio
seguiu Wanda até a residência da família de Wally. Agora teriam um lugar onde
passar as noites durante a estadia em Verdanturf, ou seja, um problema a menos
para resolver.
• • •
— Ruby, estamos muito felizes em
ver você — a mãe de Wally e Wanda sorria enquanto retirava as compras das
sacolas. — Quando você estiver com sua família de novo, diga que eu mandei um
abraço e que eles estão convidados pra vir aqui quando quiserem.
— Eu acho meio difícil eles virem,
porque meu pai teria que se ausentar do ginásio, mas se tiverem a oportunidade
de aparecer lá em Petalburg eu tenho certeza que eles vão adorar ver vocês —
comentou o menino.
Todos já estavam na cozinha. As
compras frescas seriam utilizadas justamente para o almoço que a família estava
preparando. Zinnia não pôde deixar de notar como os produtos estavam bem
cuidados.
— As verduras e as frutas estão
muito bonitas — disse a draconid, sem tirar os olhos das tamato berries quase
reluzentes que estavam sobre a mesa.
— Aqui em Verdanturf sempre tem uma
feira organizada pelos pequenos produtores que aproveitam a fertilidade das
terras próximas ao Monte Chimney para plantar — explicou Wanda. — Tivemos muita
sorte de escolher viver aqui, nós nem sabíamos disso. E se você gostou da
aparência, espere só até provar o sabor!
— Então quer dizer que vocês dois
são os rivais do Wally na jornada dele? — o pai do garoto puxou conversa com os
mais novos enquanto dobrava o jornal que esteve lendo até então. — O Ruby
dispensa apresentações, ele já é de casa. Mas quanto a você, Sapphire, o Wally
disse que você parece ser uma ótima treinadora.
— Eu não diria que eu estou com
essa moral toda — a menina coçava a parte de trás da cabeça com um sorriso sem
jeito. — Mas eu estou fazendo o melhor que posso pra chegar nesse nível. E
sobre o seu filho, eu ainda não vi como ele batalha, mas tive a oportunidade de
assistir a apresentação dele em dois contests, e foi impressionante. Se ele
batalhar tão bem quanto se apresenta, então eu é que vou ter que começar a
treinar mais.
— Eu não sei se o Ruby chegou a
comentar sobre isso com vocês, mas o Wally tinha um problema grave de asma
quando era mais novo — disse a mãe do garoto enquanto começava a cortar os
legumes. — Ele era muito debilitado quando criança, porque ele não podia fazer
esforço físico que já entrava em crise.
— Acho que eu ouvi o Ruby e o Wally
comentando algo por cima quando nos encontramos em Rustboro — Sapphire
comentou.
— Foi por isso que viemos para
Verdanturf. O ar aqui é mais puro, mesmo Violet não sendo uma metrópole, ainda
tinha um grau de poluição que prejudicava muito uma pessoa frágil como o Wally
era.
— E ficamos impressionados quando
ele voltou pra casa essa semana — disse o pai. — Ele está bem mais forte agora.
Coincidência ou não, naquele
momento em que todos falavam do garoto um barulho foi ouvido vindo da entrada
da casa. O som da fechadura da porta sendo acionada marcava a chegada de mais
alguém. Os passos foram ficando mais altos na medida em que a presença se
aproximava da cozinha, e quando Wally adentrou o local sua expressão foi de
surpresa ao ver que tinha visitas.
— Ruby, Sapphire! Finalmente vocês
chegaram!
— Você falando assim até parece que
combinamos de nos encontrar aqui — disse o garoto rindo.
— Eu sabia que você ia aparecer,
por isso fiquei aqui para ver o contest. Nós não nos vemos desde Slateport,
precisamos colocar a conversa em dia.
Wally levou todos até seu quarto.
Ruby entrou como se estivesse na própria casa, tamanha era a sua intimidade com
o garoto. Zinnia pediu licença antes de seguir os dois e Sapphire foi quem
estranhou um pouco estar entrando no quarto de um garoto, ainda que soubesse
que não vinha nenhum tipo de maldade de Wally.
Aos poucos a conversa foi se
desenrolando. Ruby e Sapphire contaram a ele sobre as coisas que aconteceram
após Slateport, desde as revelações envolvendo Miriam, a separação do grupo, os
ocorridos em Mauville e a chegada de Zinnia.
— E por que você veio pra cá? —
questionou Sapphire.
— Bom, depois de Slateport eu fui
pra Dewford, porque ainda não tinha enfrentado o ginásio de lá — contou o
garoto. — Depois que consegui a insígnia de lá eu queria voltar e tentar de
novo o contest de Slateport, mas ainda vai levar mais uma semana pra ele
acontecer de novo. Então eu fiz mais algumas sessões de treino com o Brawly na
Caverna de Granito para fortalecer a minha equipe. Fiz o caminho por Rustboro
pra já eliminar uma parada que eu teria que fazer de qualquer jeito. Reconhece
isso aqui, Ruby?
Wally estendeu a mão fechada para
seu amigo. Quando Ruby abriu a mão, o outro deixou cair um pequeno brasão
metálico que o garoto reconheceu logo de cara.
— Essa insígnia! — Ruby olhou
chocado para o amigo. — Wally, você derrotou o meu pai! Isso é incrível!
— Eu quase me matei pra vencer essa
batalha, mas de alguma forma eu consegui — o menino riu. — O Wally do passado
nunca acreditaria se eu dissesse que um dia ele iria vencer uma batalha contra
o tio Norman.
— Essa é a insígnia do ginásio de
Petalburg? — Sapphire olhou fixo para o objeto. — Legal, eu quero uma também.
— Ganha do meu pai que você
consegue a sua — disse Ruby. — Mas já vou avisando, batalhar contra ele é
pesado.
— A velha fama dos líderes do tipo
Normal, não é mesmo? — Wally riu, fazendo com que imediatamente ele e Ruby se
lembrassem da infame Whitney e sua Miltank no ginásio de Goldenrod.
— Pelo menos o meu pai não tem uma
Miltank, né?
— Não sei se isso é uma boa notícia
como parece, porque aquele Slaking é tão impiedoso quanto.
— É, o Shogun é assustador mesmo...
— Vocês estão me dizendo que o pai
do Ruby usa um Slaking no ginásio dele. É isso mesmo? — Sapphire indagou, já
demonstrando nervosismo por conhecer a fama ruim daquela espécie.
— É, querida... Boa sorte, viu? —
disse Zinnia enquanto mascava um chiclete.
O tempo passou e o almoço ficou
pronto. Por sorte a família de Wally sempre comprava os mantimentos em maior
quantidade, e assim não foram surpreendidos pela chegada repentina das visitas.
Como Wanda disse mais cedo, o sabor
dado pelos ingredientes comprados por eles era muito melhor do que qualquer
coisa que eles já tinham comido antes. Resultado de um ótimo trabalho de
cultivo e também de preparo.
— Ei, Sapphire — Wally chamou a
atenção da menina. — Quantas insígnias você já tem?
— Ainda estou com três, só batalhei
em Rustboro, Dewford e Mauville. Depois que a gente sair de Verdanturf vou
desafiar o ginásio de Lavaridge.
— Ué, então eu te passei? Eu estou
com quatro insígnias! Mauville, Dewford, Rustboro e Petalburg.
— Você está fazendo as coisas bem
rápido então — Ruby comentou. — Se acalma um pouco, aproveita esse fim de
semana que você vai ficar por aqui e descansa. Senão vai acabar sobrecarregando
você e seu time. Ainda mais porque vocês estão disputando os contests enquanto
desafiam os ginásios da Liga.
— Eu sei, é que depois que treinei
com o Brawly lá em Dewford eu senti que fiquei mais resistente, quase como se a
minha asma tivesse ido embora. Isso me deu uma sensação de liberdade que nunca
achei que eu ia ter, então acho que acabei me empolgando um pouco.
Ruby sorriu. Ele estava
verdadeiramente feliz por ver que seu amigo parecia estar finalmente se
libertando daquela doença horrível que por tanto tempo o privou de viver como
um garoto normal.
— Sapphire, quando vocês estiverem
indo embora de Verdanturf o que me diz de batalharmos? Queria testar meu time
contra o seu.
Sapphire se viu surpresa com o
desafio repentino, mas sua determinação logo subiu. Um sorriso se fez em seu
rosto, já que havia recebido o tipo de convite que para ela era irrecusável.
— Uma batalha contra um treinador
que tem quatro insígnias vai ser bom pra me preparar pro próximo ginásio —
disse a menina. — Vamos, com certeza!
— Ok, vocês podem batalhar o quanto
quiser, mas pelo menos se alimentem bem porque saco vazio não para em pé —
disse Wanda, incentivando os mais novos a terminarem de comer antes que a
refeição esfriasse.
O comentário de Wanda arrancou
algumas risadas, principalmente de Wally. Os dois estavam sentados lado a lado,
e tinham entre si uma sintonia muito forte e positiva. Sapphire percebeu que
Ruby sorria ao olhar pra eles, mas quando parou para prestar mais atenção
percebeu que havia algo naquele sorriso. Algo diferente do último que ele deu
poucos minutos antes. Este último vinha acompanhado de uma carga melancólica
que causava estranheza na garota. Era como se Ruby tentasse criar uma cortina
por fora para esconder seu interior, que parecia estar sufocando.
Após o almoço os quatro viajantes
saíram para apreciar mais a cidade. Wally os levava até os pontos que achava
mais interessantes. Verdanturf, apesar de pequena, possuía vários pontos
interessantes para quem gostaria de um fim de semana sossegado em uma cidade
pequena. A praça bem arborizada, sorveterias, cafés, mais do que se podia
imaginar em uma cidade daquele tamanho.
Wally explicava que após a
construção do Contest Hall na cidade o comércio começou a se desenvolver,
pegando embalo no movimento que lá se criava durante a temporada de contests. E
por serem de rank 1 já não se tratava de contests do nível mais baixo, uma vez
que ali só participavam aqueles coordenadores que já haviam conquistado uma
fita, subindo assim o nível das competições e atraindo mais espectadores que
não estavam dispostos a ver coordenadores inexperientes cometendo erros bobos.
A noite então chegou, e todos já
estavam de volta à casa de Wally. Como sugerido por Wanda, Sapphire e Zinnia
foram para o quarto de hóspedes. Ruby foi junto com Wally para o quarto do
amigo. Ele já estava vestido para dormir com uma regata e uma bermuda, sendo
situada no vasto planalto conhecido como a Região das Terras Altas de Hoenn e
na encosta de uma montanha, Verdanturf era uma cidade quente, e naquele dia
específico fazia um calor um pouco mais forte que o habitual.
Os dois deitaram para dormir. Ruby
estranhou o fato de Wally não ter puxado assunto, pois era o que sempre fazia
quando um ia dormir na casa do outro nos tempos de escola. Talvez o dia
seguinte dele seria corrido, quem sabe? Mas não durou muito até que o menino
falasse algo.
— Ei, Ruby.
— Sim?
— A Sapphire é forte? — Ruby não
conseguia ver, mas Wally sorria olhando para o teto, como se já estivesse
imaginando o confronto que teria contra a rival.
Ruby parou para refletir sobre a
amiga. Ele que tinha acompanhado sua evolução desde que saíram juntos em
jornada, então ele poderia dar alguma resposta ao garoto que pudesse saciar sua
curiosidade.
— É sim. Bastante. Nós dois
batalhamos uns dias atrás em um treino. Se não tivéssemos sido interrompidos
ela ia limpar o chão com a minha cara.
— Caramba, mas a diferença é tanto
assim? Você me venceu no Contest de Slateport, e já é bom em batalhas. Ela
então deve ser realmente forte.
— Era um tipo muito específico de
batalha que tivemos em Slateport, e mesmo assim eu venci por muito pouco. Você
já tem quatro insígnias, Wally. Se batalhássemos hoje eu não teria chance.
— Eu só concordo porque você não
treina para batalhas. Seu time é muito focado em contests. Mas você era
talentoso quando seu pai nos deixava usar alguns Pokémons pra batalhar lá nas
rotas perto de Violet. Eu tenho certeza que se você começasse a treinar pra
valer poderia até ir pra Liga. Imagine só: eu, você e Sapphire disputando a
Liga! E se caíssemos os três no mesmo grupo? Teríamos a chance de batalhar
entre nós valendo tudo ou nada!
— Wally, eu acho que você está
viajando demais — Ruby deu um riso. — Eu até tinha interesse em batalhas, mas
os contests são importantes pra mim.
Wally respirou fundo. Sabia que não
ia conseguir convencer o amigo cabeça-dura. Mesmo assim sorriu e se virou para
dormir. E ele já entendia a razão pela qual Ruby era tão obcecado em ser
coordenador.
— Você ainda sente falta da Eliza,
não é? — Wally perguntou.
— Não tem como esconder nada de
você, não é? — Ruby encarou seu parceiro de quarto, seu semblante agora era de
tristeza. — Sim, eu quero continuar o legado dela. Eu não posso simplesmente me
permitir focar em outra coisa e correr o risco de perder desempenho neles.
Diferente de você eu sou péssimo em fazer mais de uma coisa ao mesmo tempo.
Um breve silêncio se fez presente
no quarto. Nenhum dos dois sabia o que dizer ao certo. Wally, no entanto, não
se sentia constrangido. Ele gostava quando Ruby conseguia se abrir mais um
pouco, pois desde o dia que Eliza se foi ele não conseguia se permitir alcançar
o mundo exterior.
— Que merda... — o visitante
murmurou, se tapando com o lençol que usaria para se cobrir, como se tentasse
se esconder de alguma coisa.
— Você que sabe, eu não vou te
forçar a nada. Mas eu gostaria muito de te ver batalhando a sério algum dia. Só
pra ver até onde vai a sua capacidade. Até lá, seja o melhor coordenador que
puder, pela Eliza.
Ruby ficou alguns segundos sem
dizer nada. Wally aguardava paciente a resposta do amigo. Foi quando ele deu um
respiro fundo e finalmente saiu de baixo do lençol com uma expressão já mais
resolvida.
— Eu vou sim. Mas me prometa uma
coisa.
— Sim, pode falar.
— Nunca deixe que a Sapphire saiba
que eu disse uma palavra tão vulgar.
Wally encarou o amigo por alguns
segundos, sem entender como ele conseguia sair de um buraco emocional tão
profundo para se preocupar com algo tão banal logo em seguida. O garoto riu,
coçando seus cabelos verdes, tamanho era o absurdo daquele pedido.
— Ah, Ruby, “merda” nem é tão
pesado assim.
FIM DO CAPÍTULO 34
Notas do Autor - Capítulo 33
Capítulo 33
Objetivos e resoluções
A entrada da cidade de Verdanturf
já podia ser vista no fim da estrada de terra que atravessava a Rota 117. O
tempo estava aberto, mas com o sol ameno de modo que os viajantes não
precisavam se preocupar com o calor naquele dia. Uma leve brisa vinda dos
pequenos lagos que margeavam a trilha ajudava a manter o clima bem tranquilo
por ali.
O grupo estava em uma pequena
pausa, a última antes de adentrar a cidade destino. Sapphire tentava treinar seu
novo companheiro Psyduck, com Zinnia tentando dar algumas instruções, mas o
pato era um completo avoado, deixando a garota de certo modo frustrada com a
aparente perda de tempo enquanto a draconid tentava acalmá-la.
Ruby, por sua vez, estava um pouco
mais afastado das duas companheiras de jornada. Jeff estava sentado ao seu
lado, ainda emburrado pela batalha que havia tido no dia anterior, da qual só
não saiu derrotado por conta da intervenção daquela garota chamada Lydia.
O garoto se sentia desconfortável.
Não sabia qual seria a reação de seu parceiro caso tentasse puxar conversa. Mas
se lembrou do sermão de Zinnia sobre como ele, como treinador, deveria tomar a
iniciativa e procurar melhorar a relação dele com o Treecko. Sabia que não
podia deixar aquela decisão se estender por muito tempo, porque precisava
contar com ele para continuar a busca pelas fitas.
— É... Eu sei que perder é chato — “comecei
mal”, pensou o coordenador. — Mas a Sapphire e o Dante são bem mais experientes
que nós. Eles estão treinando há mais tempo. O que tivemos ali foi uma
experiência.
Jeff não tinha muita vontade de
olhar pra Ruby naquele momento, mas apesar de ter se virado de costas
continuava ouvindo.
— Nós estamos começando. Vamos
melhorar com o tempo, só precisamos continuar trabalhando juntos — o garoto
logo sorriu. — Eu sei que você tem uma rivalidade com o Dante, então perder pra
ele deve ser bem pior do que perder qualquer outra batalha. Eu não sei se tenho
alguém a quem eu posso chamar de rival. O Wally é um adversário, mas é meu
amigo há tanto tempo que eu não sei se conseguiria sustentar uma relação de
competitividade com ele. Talvez a Emily... É, eu acho que odiaria perder pra
ela de novo, só de pensar naquele sorriso cínico na cara dela eu já fico
angustiado. Então eu te entendo bem, pelo menos nesse ponto nós somos bem
parecidos.
Aos poucos o pequeno lagarto foi
cedendo, até que finalmente se virou de frente para Ruby e começou a prestar
atenção no que ele dizia. O garoto abriu mais um sorriso, dessa vez de
satisfação.
— Você é o às da equipe. Eu preciso
te deixar em forma pra poder vencer as apresentações focadas em batalhas. Não
vou te deixar na mão. Eu conheço muito sobre teoria de treinos, mas na prática
também estou aprendendo. Mas se trabalharmos lado a lado a gente vai encontrar
um jeito de evoluir juntos. Eu não vou deixar você ficar pra trás com relação
ao Dante. Da próxima vez que nós enfrentarmos ele e a Sapphire a gente não vai
perder de jeito nenhum!
O garoto esticou o braço, apontando
um punho cerrado pro seu Treecko. Jeff sequer hesitou ao responder o
cumprimento, tocando o seu punho com o de Ruby. Ainda que tentasse bancar o
durão, não tinha como não acreditar nas palavras de seu treinador pela forma
como ele falava. Ruby podia ser inexperiente, mas falava muito bem e sabia como
passar confiança quando necessário. Zinnia, mesmo focada no treinamento de
Sapphire, observava os dois de longe e sorriu com satisfação ao ver que as
coisas estavam melhorando.
— Os meninos estão começando a se
dar bem — comentou a draconid. — Bora botar a cabeça desse pequeno aí pra
funcionar?
— Falar é fácil, mas pra conseguir
isso primeiro eu tenho que descobrir em qual universo ele tá vagando —
respondeu Sapphire dando um suspiro na sequência.
O Psyduck inclinou a cabeça,
parecendo nem entender que as duas falavam dele.
— Éeeeeh não tem jeito — disse a
draconid. — Parece que vamos ter que respeitar o tempo dele.
— Eu queria poder usar o Psyduck no
ginásio de Lavaridge. Lá usam Pokémons de fogo, ele seria perfeito, já que não
vou poder usar a Shroomish. Zinnia, vamos fazer um treino? Pra eu tentar
colocar o Psyduck pra funcionar.
— Sapphire, você tem treinado
exaustivamente desde que saímos de Mauville. Seus Pokémons pelo menos estão
conseguindo descansar por causa do revezamento, mas você está se levando ao
limite. Tenta relaxar um pouco agora que estamos na entrada de Verdanturf. Uns
dois dias pra recuperar a energia não vão te fazer mal.
— Mas eu sinto que preciso melhorar
muito ainda! Os ginásios estão ficando cada vez mais difíceis, e eu não cheguei
nem na metade deles!
— E se você continuar assim nem vai
chegar. A exaustão vai te causar prejuízos no desempenho, no raciocínio e na
saúde. E outra coisa, você vai ficar bem. Essa sua insegurança te impede de
pensar direito. Você é mais forte do que imagina.
A menina suspirou fundo. Ela sabia
que o que Zinnia falava era verdade. Sapphire por pouco nem se reconhecia, já
que a garota nunca foi de se levar tão ao extremo. Ela nunca havia tocado no
assunto com seus amigos, mas quando estiveram na Creche Pokémon de Lydia e
Isaac a menina viu seu reflexo no espelho e reparou que estava começando a
ficar com olheiras. Talvez fosse mesmo o momento de dar uma pausa.
Ruby havia terminado de conversar
com Jeff. O garoto retornou toda a sua equipe para as Pokéballs e se dirigiu
para as amigas.
— Foi uma boa conversa. Acho que
estamos progredindo — o menino tinha um sorriso satisfeito. — O Treecko é bem
forte, então se eu conseguir trazê-lo pro meu lado eu tenho certeza que as
coisas vão começar a dar muito certo.
— Isso é ótimo, Ruby — Zinnia abriu
um sorriso. — Mas assim como eu disse pra Sapphire, vou dizer pra você também.
Tente não se forçar muito, dê um tempo pro seu Treecko. Quando as coisas são
feitas com calma há menos espaço pra erros. Tenho certeza que vocês vão se
entender.
— Obrigado, Zinnia — disse o
garoto. — Sendo bem sincero, eu estava um pouco desconfiado quando você se
juntou a nós, mas agora estou gostando bastante de ter você aqui.
— Vocês têm algo que me intrigam, e
eu quero descobrir o que é — disse a mais velha. — Mas acho que o mais
importante é ter com quem compartilhar boas memórias. Posso ser mais velha do
que vocês, mas é a primeira vez que estou viajando por Hoenn também. Meu povo é
bem fechado pro mundo externo, então eu nunca tive muita liberdade, sabe? Mas
agora estou podendo ver tudo que existe nessas terras que meus antepassados
defenderam arriscando suas vidas, e eu estou entendendo o motivo. É um lugar
maravilhoso. Fico me perguntando se existem outros lugares, outras Hoenns lá
fora.
— Você só vai saber indo até lá — Sapphire provocou. — Aproveite essa sua nova liberdade pra ver o mundo. Mas só depois que finalizarmos a nossa jornada juntos. Até lá queremos você com a gente. Mas vou te dar uma dica. Não existem outras Hoenns pelo mundo. Mas existem lugares tão únicos quanto. E essa é a parte interessante.
— É, foi mais nesse sentido que eu quis dizer mesmo — a draconid respirou fundo. — Bom, se ainda temos que explorar Hoenn, acho que podemos começar andando mais alguns metros. Eu nunca estive em Verdanturf, então vamos riscar esse lugar da minha lista de destinos que ainda preciso ir!
• • •
Depois de uma breve estadia em
Fallarbor, Miriam atravessou as cavernas de Meteor Falls sem muita dificuldade
e retornou a Rustboro. Depois de passar por algumas ruas a garota estava na
entrada do prédio do Departamento de Polícia da cidade, que era a sede de toda
a corporação em Hoenn. A treinadora engoliu seco, era a primeira vez que
entraria em alguma instalação das autoridades de segurança desde que entregara
o cargo de estagiária.
Ela passou pela porta automática,
sendo surpreendida pela mudança súbita de temperatura provocada pelo
ar-condicionado, contrastando com o calor que fazia do lado de fora. Caminhou
até a recepção, onde foi atendida por um oficial do posto.
— Miriam Ashton — disse a menina. —
Tenho uma reunião com a senhorita Anabel.
— Certo, deixa eu consultar a
agenda dela... — o policial começou a vasculhar alguns documentos no computador
da recepção, até que encontrou a informação que precisava. — Ok, Miriam. Pode
esperar no corredor do andar de cima. A sala dela é a porta ao final do
corredor. Creio que ela esteja terminando uma reunião agora, mas ela está sim à
sua espera. Assim que possível ela vai te atender.
A menina fez um aceno com a cabeça
em agradecimento e seguiu o caminho indicado pelo rapaz. Ao chegar ao local de
espera a primeira coisa que procurou foi um lugar para se sentar, e encontrou
um belo sofá creme entre dois vasos de planta.
Miriam jogou sua mochila em cima do
sofá e se sentou logo ao lado. Enquanto aguardava ser chamada seus olhos
passeavam pela sala. No teto apenas uma fileira de lâmpadas fluorescentes dando
um brilho ainda mais forte ao já branco chão de porcelanato. Na área onde
estava, além do sofá e das plantas, um filtro de água com alguns copos
descartáveis e um pequeno aquário com alguns Luvdiscs pacificando o ambiente.
— Credo, isso aqui tá parecendo um
corredor de hospital... — a garota
murmurou agoniada com a limpeza exagerada do lugar.
Não demorou muito até que a porta
da sala de Anabel se abrisse. De lá de dentro saiu um homem de meia-idade,
alto, com cabelo curto e grisalho e olheiras profundas como as de quem já vinha
trabalhando há dias sem descanso. Seu sobretudo marrom esvoaçava de forma quase
heroica na medida em que ele avançava com rapidez pelo corredor. Ao passar por
Miriam, só teve tempo de dar um breve cumprimento.
— Boa tarde.
— Boa tarde... — a menina
respondeu, sem entender bem quem era aquela pessoa.
— Miriam? — a voz de Anabel vinha
da porta da sala. — Pode entrar!
Miriam respirou fundo, pegou suas
coisas e seguiu pelo corredor. Anabel a esperava na porta, mas sua feição séria
dessa vez dava lugar a um sorriso sereno. Seria porque elas não trabalhavam
mais juntas? Miriam lembrava de alguém ter dito a ela certa vez que o fim da
convivência rotineira quase sempre melhorava a relação entre duas pessoas, até
mesmo da própria família.
Anabel saiu do meio da porta, dando
passagem para a menina. Estendeu o braço na direção das cadeiras de frente para
sua escrivaninha, sinalizando para que Miriam escolhesse uma para se sentar.
Assim que a garota o fez, a mulher fechou a porta e girou a chave.
— Café? Chá? Água, biscoitos... Ali
na mesa perto da estante, pode se servir à vontade. Você sabe que já é de casa
— dizia a mulher enquanto dava a volta na escrivaninha para se sentar na sua
cadeira.
Miriam meneou negativamente com a
cabeça. Ainda estava um pouco nervosa para falar alguma coisa. Percebendo isso,
Anabel deu um leve riso e, pondo as mãos entrelaçadas em cima da mesa, tentou
quebrar o gelo.
— Como vai a vida? Ouvi dizer que
você derrotou a Greta. Com isso já são dois Símbolos da Fronteira. Não esperava
menos de uma garota talentosa como você.
— Obrigada. Pra falar a verdade eu
não venci a Greta, mas ela achou que eu devia ficar com o símbolo.
— Se ela te julgou merecedora do
símbolo, então você venceu o desafio. Existe muito mais numa batalha do que os
resultados frios. Muitas vezes eles não dizem aquilo que precisamos saber. A
Greta é excelente em analisar jovens talentos, então sinta-se honrada que ela
viu esse potencial você, Miriam. Falando nisso... — Anabel deu uma risadinha
enquanto coçava de leve a maçã do rosto com seu indicador. — Vocês duas até que
têm personalidades parecidas.
— Pelo amor de Arceus, nem brinca
com isso! Aquela garota é doidinha de pedra! — respondeu a menina, pela
primeira vez se sentindo mais à vontade naquela sala.
Anabel riu com o comentário da
menina, porque sabia que caso os papéis fossem invertidos Greta faria o exato
mesmo comentário.
— Sapphire e Ruby não estão mais
viajando com você, não é? Eu os vi em Mauville quando teve aquele problema na
usina, e você não estava junto.
— Não, nós acabamos nos separando
logo depois daquela vez que nos vimos. Apesar deles terem me defendido lá no
museu, depois a situação realmente ficou estranha. Eu não tenho como culpar os
dois, eu provavelmente me sentiria do mesmo jeito.
— Você gostava deles, não é mesmo?
— Ainda gosto. Queria poder estar
com eles ainda, mas sei que eles provavelmente não vão querer conversa comigo.
— Eu sinto muito pelo que aconteceu
lá em Slateport. Mas era a coisa certa a se fazer. Mesmo você se desligando da
Polícia, seu nome ainda vai ficar ligado a ela e a mim por algum tempo. Isso os
colocaria em risco caso você se torne um alvo.
— Eu entendo perfeitamente,
senhorita Anabel. Foi melhor assim. Estar viajando sozinha nesses últimos
tempos me deu a oportunidade de refletir mais sobre tudo que aconteceu até
aqui. Depois que eu repensei o que passamos no caminho para Dewford cheguei à
conclusão de que eles são minha responsabilidade. Se eles se machucarem ou até
mesmo morrerem em um ataque da Team Aqua ou Team Magma, a culpa vai ser minha.
Anabel deu um longo suspiro. Para
ela não era uma situação confortável saber que tinha que privar Miriam de viver
como ela gostaria, mas a menina sabia desse risco quando tomou a decisão de
aceitar o estágio.
— Por mim vocês estariam juntos
ainda. Bem, eu torço para que vocês se resolvam em breve, porque quando a gente
der um fim nos Aquas e nos Magmas, e a gente vai dar um fim neles, eu
quero que vocês voltem a viajar em grupo e viver suas histórias juntos.
Miriam sorriu. Por um momento ela
quase se arrependeu de pedir dispensa. Anabel podia ser rígida e exigente com
relação ao trabalho, mas sempre apoiou a mais nova a seguir o caminho que
desejava.
— Bom — disse a mulher já trocando
o assunto. — Voltando a falar da Batalha da Fronteira, por que você ainda não
me desafiou? Você tem o meu contato, sabe onde me encontrar, sabe que é só me
pedir que eu arrumo um espaço na minha agenda para batalharmos.
— Ah, isso é porque eu quero que
você seja a última que vou enfrentar.
— O chefe dos Cérebros da Fronteira
é o Brandon, não eu. O natural é que você o enfrente por último.
— Mas você me ensinou bastante, por
isso quero que você seja a última para que você me veja usar tudo que aprendi
com você na minha força máxima.
— Eu não te ensinei nada sobre
batalhas.
— Mas eu não estou falando de
batalhas.
Anabel foi pega de surpresa com o
comentário de Miriam. Não era muito do perfil da menina fazer tantos elogios.
Pelo menos não com tanta sinceridade. Ela estava mais pro tipo que faria um
comentário positivo velado por trás de alguma piada ou algo do tipo.
— Tudo bem então, se é assim eu vou
esperar pacientemente — disse a mulher. — E já que é pra vir com força máxima,
vou sugerir que você faça uma coisa. É um desafio novo que eu vou te passar,
que vai dar bastante trabalho, mas que se você combinar com a sua disputa na
Batalha da Fronteira vai te tornar uma treinadora extremamente forte. Considere
isso como a última tarefa que estou te passando antes de dar baixa nos seus
documentos.
— E o que seria essa tarefa?
• • •
Mais tarde naquele dia, Miriam
estava em uma praça da cidade com sua equipe. Era um tempo livre que ela estava
dando aos seus Pokémons depois de um trabalho tão duro. Enquanto Venomoth e
Mudkip interagiam com o recém-chegado Zangoose, a Nidoqueen se mantinha próxima
de sua treinadora.
— Achei que a Anabel ia me odiar
depois que pedi dispensa, mas ela me deu apoio — a menina sentia que havia
tirado um peso enorme de seus ombros. — Eu fiquei feliz, de verdade.
A Nidoqueen, que apenas ouvia a
garota, acenou alegre com a cabeça.
— Ela nos deu uma tarefa bem
ingrata pra usarmos como treinamento, sabia? Vai ser bem cansativo, mas acho
que é o mínimo que podemos fazer depois do apoio que ela nos deu. Eu pensei
muito no assunto, e decidi que quero fazer isso. Até pra enfrentar a Anabel no
nível mais alto que eu puder. Eu quero dar a ela uma batalha que a faça sentir
orgulho. Posso contar com você nessa missão?
A chefe da equipe de Miriam sorriu
para sua mestra, batendo os dois punhos um contra o outro como quem dizia estar
preparada para o que viesse. Após explicar o mesmo para o restante do time, a
garota sentiu a mesma confiança vindo dos demais membros. Até mesmo o Zangoose
rabugento se animou. Afinal, quanto mais oportunidades para sair brigando por
aí, melhor para ele.
E assim a menina correu pelas ruas
até o destino apontado pela Cérebro da Fronteira. Um lugar que ela já sabia
onde ficava, um prédio conhecido. Ao entrar, perguntou na recepção pela pessoa
encarregada do local e foi orientada por quais corredores devia seguir. Foi
então que chegou para a segunda reunião que teria naquele dia, mas essa seria
bem mais breve.
Na sala estava Roxanne, bebendo chá
enquanto lia apenas mais um dos milhares de livros da biblioteca da cidade. Se
a mulher ainda não havia consumido todo o acervo literário ali existente, devia
estar bem perto de fazê-lo. A líder de ginásio reconheceu a menina logo que a
viu entrar no local.
— Você não é a menina que estava
com a Sapphire quando ela esteve aqui? Como é seu nome mesmo?
— Miriam.
— Hm, Miriam... Você é a pessoa de
quem a Anabel estava falando, não é?
— Sim, eu mesma. Eu não sei se ela
comentou com você, mas eu vim fazer um pedido.
Miriam retirou de sua mochila um
papel enrolado em uma fita, e o entregou para Roxanne. Quando a líder abriu,
reconheceu de imediato o documento.
— Este é o certificado que você
ganhou quando passou no meu exame de admissão.
— Isso mesmo — a garota respirou
fundo, tomando coragem para o que diria logo após. — E é fazendo uso dele como
pré-requisito oficial do seu ginásio que eu te desafio para uma batalha valendo
a sua insígnia!
FIM DO CAPÍTULO