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Capítulo Especial: Sagrado

 

Sagrado


Estes escritos foram encontrados no interior profundo da Granite Cave, próximo da Cidade de Dewford, na região de Hoenn. Os cientistas não conseguem compreender ainda como tais pergaminhos, datados de cerca de dois mil e quinhentos anos atrás, conseguiram sobreviver por tanto tempo, praticamente intactos, quase como se algo mágicoos tivesse selado. Apesar da linguagem antiga, foi possível traduzi-lo e hoje se pode ter uma noção de como a sociedade daquela época viveu, como era o seu relacionamento com os Pokémon e parece contar sobre como era o mundo naquela era longínqua.

 

◒◒◒

 

Alfa

 

I.

Os rios continuavam indo atrás do mar. Eu estava lá quando tudo sucumbiu. E então, em um piscar de olhos, tudo desapareceu.

Na verdade, eu nunca soube muito bem onde dera errado. Nós tínhamos os melhores engenheiros, os melhores materiais, as melhores equipes de homens e Pokémon noite e dia, dia e noite, debaixo de chuva e sol, levantando cada centímetro quadrado daquela torre e, no fim das contas, tudo deu errado. E deu errado, não porque não sabíamos por que fazíamos, mas esquecemos para quem fazíamos.

Os rios continuaram indo atrás do mar. E foi aí que tudo se perdeu.

 

II.

Houve um tempo em que a terra era inteira. Uma única massa que era contornada pelo infinito oceano. Ao menos, éramos o que nós acreditávamos e não havia nada no mundo que nos fizesse duvidar disto. Vivíamos em harmonia com as águas, pois das águas nós tirávamos nosso sustento. E graças às bênçãos do nosso deus Kyogre, o leviatã, nós do Povo da Água nos orgulhávamos de nunca deixar nada faltar para os nossos irmãos que da terra também faziam morada. O que o mar nos trazia, dividíamos e compartilhávamos com povos de outras aldeias, muitas delas distantes, que vinham apenas para conseguir um pouco de comida e água. Alguns até ficavam e passavam a ajudar nos trabalhos com a pescaria e navegação. E, quando nos demos conta, havíamos nos tornando um único, uma unidade, como o mar. Como uma família, um por todos, todos por um. E os rios continuavam indo atrás do mar.


 

III.

Conforme os rios continuavam indo atrás do mar, houve a necessidade de devolver ao nosso deus Kyogre todas as bênçãos que Ele nos dera. Ao nos reunirmos para discutir com os demais aldeões sobre esta necessidade, logo alguém sugeriu que poderíamos construir um lar, em terra, para que Ele pudesse estar mais próximo de nós, o Povo da Água. Seria algo majestoso, tal qual nosso deus Kyogre, que em tudo nos abençoa e em tudo nos provê.Logo, eu fui incumbido de registrar nestes pergaminhos todo o progresso do projeto, desde suas concepções iniciais até o local onde seria construído. E, posso dizer sem sombra de dúvidas que escolhemos o lugar mais bonito que nosso deus Kyogre poderia ter moldado. As areias brancas delineavam o beijo entre a terra e o mar. As ondas tocavam-nas de forma tão suave que pareciam saber que acariciavam algo sagrado. Quando o sol alcançava o ponto mais alto do céu, era como se nós pisássemos em diamantes. Diamantes brilhantes, cujo brilho nos ofuscava. Às vezes, parecia até que aquele lugar não podia existir de verdade.Era como se estivéssemos dentro de um sonho maravilhoso do nosso deus Kyogre. Como se Ele próprio mostrasse para nós, necessitados de Sua benevolência, que era exatamente ali que Ele queria que construíssemos o monumento que honrasse Vossa Magnificência. Os rios continuaram a seguir atrás do mar e logo passamos a erguer o monumento, que planejávamos que fosse tão grandioso quanto a graça do nosso deus Kyogre, o leviatã.

 

IV.

Dias se passavam enquanto os rios seguiam atrás do mar. Necessitávamos de ajuda, portanto homens de diversas partes da terra, que era inteira, vieram nos auxiliar. Outros Pokémon também vieram com eles. Todas as noites nos reuníamos para compartilhar os milagres e as bênçãos do nosso deus Kyogre para os homens para que todos entendessem o motivo de estarmos fazendo aquele monumento. Ele já tinha muitos metros. Pelo menos três andares da estrutura já estavam bem sólidos, fincados no solo como as montanhas que cercavam nossa terra sagrada. Nós também permitimos que as mulheres viessem e contribuíssem com os louvores ao nosso deus Kyogre. Elas ajudavam com música e cânticos, dando-nos força a cada amanhecer para continuarmos os trabalhos. Das mãos delas, começaram a surgir as esculturas que colocaríamos no interior da torre para que nosso deus Kyogre se alegrasse quando viesse dos mares para nos conceder sua bênção.

 

V.

Até que um dia, como um rio turvoque buscava o mar revoltoso, houve os primeiros indícios de que as coisas não estavam bem. Nuvens negras de tempestade aproximavam-se com velocidade e grande temor sobre nós. Não sabíamos o que tínhamos feito para que nosso deus Kyogre ficasse com raiva. Imaginamos que talvez as mulheres tivessem feito algo. Nunca havíamos visto tamanha chuva. Os raios rasgavam o céue os trovões nos ensurdeciam. Nossos pés sentiam o chão tremer e as ondas do mar estavam tão altas quanto nossa torre. Nos escondemos durante três dias e três noites, pois toda a fúria daquela tempestade não cessou tão cedo. No amanhecer do quarto dia, nós vimos a torre de pé. E aí, nós entendemos que nosso deus Kyogre todo poderoso havia Ele mesmo se certificado que o monumento que nós estávamos construindo era digno de sua grandeza. É claro, só podia ser. Então cantamos cânticos e louvamos pela Sua graça.


 

VI.

Eu escrevo nestes pergaminhos o que testemunho com meus próprios olhos. Mas, mesmo quando não posso ver, permito-me transcrever o que me confidenciam. Desta vez, porém, não sou capaz deconfirmar com certezaa respeitoda veracidade destes relatos. Os homens de longe que vieram nos auxiliar diziam que O viram por entre as nuvens. Que havia sido Ele quem havia trazido a tempestade para testar a nossa construção e que havia sido Ele próprio quem cessou a tempestade. Hereges! Não há, nem poderia haver outro deus senão o nossomagnífico e benevolente deus Kyogre, o leviatã.Foi nosso poderoso e onipresente Senhor quem nos testou e nos aprovou em sua infinita misericórdia e sabedoria.Os rios continuavam indo atrás do mar. A torre que serviria de aliança entre nós e nosso deus Kyogre começou a sofrer interferência dos homens que habitavam a terra, que era inteira, assim como de suas mulheres, e assim passaram a cultuar este novo Ser que diziam ser o Senhor dos mares e dos céus. Imagens eram moldadas e construídas para este novo Senhor dos mares e em nada se assemelhavam ao nosso deus Kyogre, o leviatã. Louvavam nova criatura.

 

VII.

Os anciães do Povo da Água não aceitaram tamanho desrespeito e heresia, e logo iniciou-se um conflito entre o nosso povo e os homens que habitavam a terra, que era inteira como o mar. E, assim como o mar vinha beijar as areias que, outrora eram brancas e brilhavam como diamantes, o mesmo mar levava os corpos e limpava o vermelho do sangue que agora tingia as areias,tornando-as opacas.Em nossa torre, as coisas também se dividiam. E assim como o rio continuavam indo atrás do mar, a cada novo dia uma nova escultura surgia. As que representavam nosso único, verdadeiro e glorioso deus Kyogre, o leviatã, nos entalhes de barbatanas titânicas que enfeitavam a parede ao leste. Enquanto do lado oposto, grandes esculturas de asas abertas que representavam o falso deus da água erguiam-se como a provocar a ira não só do Povo da Água, mas também a do nosso deus Kyogre.

 

VIII.

Eu, como escriba, acreditei verdadeiramente que estes pergaminhos falariam sobre união, um único, a unidade que a torre que construímos para o nosso deus Kyogre representaria para nós, o Povo da Água, e os homens que habitavam a terra, que era inteira. O rio buscava o mar e eu via que cada vez mais os meus olhos me faziam registrar ruínas. E isto ficou ainda mais claro quando em meio ao conflito, uma nova tempestade se formou no horizonte, vindo em direção à nossa terra sagrada. Prestamos cânticos e louvores ao nosso deus Kyogre. Oferecemos-lhe sacrifícios para que, em sua infinita misericórdia, nos poupasse de pagar pelos pecados que os homens que habitavam a terra, que ainda era inteira, cometeram. Foram eles os hipócritas, não nós. Foram eles os hereges, não nós. Foram eles que blasfemaram nossa terra sagrada e o nome de nosso deus Kyogre, não nós. Subiram no topo da torre que construímos e que havia se tornado tão alta quanto as montanhas fincadas no solo de nossa terra sagrada. Os fortes ventos que sopravam do oceano em nossa direção eram um indicativo de que as nossas preces seriam atendidas, mas não do jeito que imaginamos.


 

IX.

Eu estava lá quando tudo sucumbiu. E então, em um piscar de olhos, tudo desapareceu. Do meio das nuvens negras de tempestade, surgiu um ser cujos braços eram asas. Eu mal pude acreditar no que os meus olhos viam. Os homens que habitavam a terra, que era inteira, levavam as mãos para o céu agradecendo pela graça que era olhar para aquele deus. A criatura deu um grito que rasgou o ar e de suas poderosas asas, ventos poderosos foram lançados em nossa direção. A torre que nós construíamos enquanto o rio continuava indo atrás do mar logo veio abaixo. Não havia mais sentido em mantê-la erguida já que nós, como homens que habitavam aquela terra, que era inteira, não estávamos mais unidos.

 

X.

Esquecemos para quem fazíamos. O nosso todo poderoso deus Kyogre, o leviatã. Duvidamos de sua existência por um breve período de tempo. Nos deixamos cegar pela imagem magnífica daquele ser alado do meio das nuvens de tempestade. E Vossa Benevolência, nosso deus Kyogre, não admitiu esse pecado entre nós, o Povo da Água. Ergueu-se majestoso por entre as ondas e nos permitiu um breve vislumbre de sua magnífica imagem antes de contribuir com a destruição de nossa bela terra, que deixara de ser inteira. Eu não pude ficar para testemunhar o duelo entre nosso deus Kyogre contra aquele falso deus, Lugia.Me escondi por entre as colunas do que restara da torre enquanto tentava me afastar o mais longe que podia, ouvindo o céu rachar e a terra, que antes era inteira e que agora estava dividida, gemer. Quem conseguiu sobreviver à fúria dos deuses, me contou depois que ambos racharam a terra e separaram-na em dois pedaços. Parece que resolveram punir toda a nossa heresia em conjunto, para que nunca mais nos esqueçamos de que nossas preces são ouvidas... Mesmo que às vezes não saibamos por quem.

 

 

◒◒◒

 

Ômega

 

Nove pergaminhos agora jaziam em cima da luxuosa mesa de carvalho, iluminada por velas acesas em candelabros espalhados pela sala ampla. A janela panorâmica dava vista para o mar, apesar de, naquela altura da noite, só poder ser visto o reflexo distorcido da lua minguante em um prateado bruxulear nas águas que ondulavam lá embaixo, na costa.Não que aquilo fosse um casebre, estava muito longe de parecer com um, apesar das paredes aparentemente construídas com madeira. Carvalho, claro. A casa que permanecia firme no topo do morro chamava a atenção de qualquer visitante que turistava pelas praias e esquinas da Cidade de Lilycove.

Sentados no centro da espaçosa sala de estar, um grupo de pessoas que prestavam atenção em uma mulher morena que se mantinha de pé, com cabelos negros volumosos que destacavam algumas mechas de cor azul em suas madeixas. O silêncio só era cortado pela voz austera que ela impostava como forma de adquirir respeito de grande parte dos colegas, homens, com quem ela dividia funções.

As atenções se voltavam entre ela, que terminava de ler o último pergaminho, com um homem sentado atrás da luxuosa mesa de carvalho, em sua cadeira de couro legítimo, que acarinhava a sua barba, perfeitamente alinhada, com os dois polegares enquanto repousava a cabeça sob as costas das mãos, numa atenção hipnotizante na mulher à sua frente.

 

— “A terra não era mais uma só. Agora era dividido em um enorme abismo azul que se misturava entre o céu e o mar” — ela lia. — “Separando os sonhos dos homens que moravam na terra, que agora era separada, dos irmãos que louvaram ao único Senhor dos mares, nosso deus Kyogre. Nós, o Povo da Água. Os homens seguiram a correnteza do rio que buscou o mar rumo ao norte e lá fizeram morada. Nós, o Povo da Água, como a água, nos adaptamos e nos moldamos, cavando na terra, que não era mais inteira, uma nova unidade. Eu, talvez o único escriba que tenha visto meu deus Kyogre todo-poderoso a olhos nus e sobrevivi para contar a história, cruzei a terra e nesta caverna enterro estes pergaminhos na esperança de um dia alguém do amanhã ler estes registros e passar a louvar a quem é digno do verdadeiro culto, pedindo que a minha alma seja perdoada e salva pelo nosso deus, Kyogre, antes de Ele acordar de seu sono profundo e afogar os pecadores em suas águas turbulentas mais uma vez.”.

 

O silêncio voltou a tomar conta da sala por alguns instantes antes de um homem parrudo, com um porte físico tão grande que seus músculos pareciam que iriam rasgar a camisa azul que vestia a qualquer momento, abordar diretamente o homem sentado atrás da mesa de carvalho.

 

— O que o senhor acha, chefe? Será que podemos realmente acreditar nisso?

 

Houve um instante de hesitação entre todos os presentes. As atenções se voltaram ao homem de barba que era o líder, que mantinha seu semblante inelegível.

 

— Matt. Você é bom em geografia?

 

Matt, o homem parrudo, pareceu não entender a pergunta. A morena que se mantinha de pé, próximo ao grupo, fechou o pergaminho, se dirigiu à mesa de carvalho e o colocou delicadamente junto aos outros. Sem fazer muito alarde, pegou algo ali próximo. Parecia um outro pergaminho, só que bem maior, enrolado de uma maneira um pouco mais grosseira. Estendeu-o no centro da sala de estar, onde os olhos dos outros repousaram e o abriu.

Não era um pergaminho, era um mapa-múndi. Matt agachou-se para segurar a outra ponta do mapa, auxiliando a mulher.

 

— Obrigado, Shelly — agradeceu o homem de barba com um sorriso.

— A região de Hoenn. Bem aqui onde nós estamos — a morena apontou com o indicador. — Entre nós e a região de Johto, há um oceano que nos separa. Posso confirmar que a terra indicada nos textos antigos, que era uma só, são hoje duas cidades que curiosamente estão separadas do continente ao qual pertencem: Dewford, a leste, e Cianwood, a oeste.

— Como uma cicatriz... — balbuciou Matt.

— Exatamente — confirmou o líder. — O que comprova não apenas que a história é real, como nosso deus também é.

— Kyogre — assentiu Shelly, quase num sussurro, como se fizesse uma prece.

— Mas o senhor não acha perigoso mantermos em nossa posse esses pergaminhos? Afinal de contas, eles vão para o Museu de Lilycove. Não podemos ter a polícia em nossa cola.

— Não se preocupe, Matt. Meu colega no museu foi muito gentil em me ceder estes pergaminhos para averiguar sua veracidade. Eles estarão expostos amanhã, conforme anunciado. Na verdade,a minha preocupação é outra.

 

Houve um novo momento de silêncio. O homem de barba não precisava fazer esforço algum para ter a atenção dos presentes.

 

— Naquela época, as pessoas passaram a duvidar da existência de Kyogre por causa de falsos profetas que anunciaram a vinda de um outro deus. Temo que isso esteja prestes a acontecer novamente e nós não podemos deixar. Vamos devolver ao nosso deus um mundo perfeito,em ele possa voltar a governar soberano, como nossos antepassados do Povo da Água assim desejavam.

 

Os membros presentes se encararam com olhares de confiança.

 

— Em nome da Equipe Aqua! — bradaram em conjunto.

— Pela glória do nosso deus, Kyogre — reforçou Archie com um sorriso maligno.



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